domingo, 26 de setembro de 2010

Thomaz

Porto Belo, 16 de Agosto de 1986,

Querido,

Conhecê-lo é amá-lo. Olhos claros que não dizem nada, mas que mostram tanto. Para os meus ouvidos sua voz é suave e seu sorriso, sincero. Parece sempre estar tão descansado que me faz o querer mais a cada instante. Quero seu corpo macio, sua boca adocicada e os quero todos aqui. Proteger em meus braços os teus sonhos castos. Ser imperfeito, incerto e livre. 

Agora que conheci minha liberdade e minha cadeia, escolhi a cela na qual quero morrer todos as noites. É a ti que desejo, é de ti que sinto falta todas as manhãs. Aquele espaço vazio na minha cama lhe cabe tão bem. O calor que não existe em minha carne é o seu. O vazio em algum lugar aqui dentro que tanto me faz suspirar tem lugar guardado com seu nome.

Hoje conheço minha libertinagem e minha cela. Meus grilhões são seus, os tome, tome em suas mãos tudo que é meu. O sonho é novo todas as tardes e morre quando não lhe vejo. Passar minhas palmas nas tuas, sentir roçar nossos dedos sem os entrelaçar. Apertar-lhe forte o corpo contra o meu e beijar-lhe o rosto de menino. Fechar os olhos e me deixar perder nesses cachos e ondas de um dourado profundo, quase negro. Acordar todas as manhãs antes do sol nascer e admirar-lhe nu, recostado em mim. 
Quero amar-lhe tanto que não lhe peço em troca o mesmo amor novamente. Já não sei onde está, mas sei que tem a quem encantar. Peço-lhe para ouvir-me quando sozinho estiver. Lembra-se da minha voz e do meu sorriso, leve-os consigo, saiba que lhe quero bem. Meu eterno homem e minha eterna brandura.

Do seu,
Olívio.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Anne Vosgrau



"Em tudo que fizer, bondade.
Em tudo que lhe faltar, longanimidade.
Com todos que te cercam, amor.
Todas as manhãs, paz.

Enquanto houver flores em nosso jardim, tudo há de se arrumar."
Anne Vosgrau



domingo, 12 de setembro de 2010

Johan Malmann

   Uma manta a tiracolo, meus chinelos de camurça e uma xícara de chá; sentado em minha melhor cadeira de praia. Ali da varanda eu observava o quintal que se estendia até onde a vista poderia chegar, minha pequenina sentada no último degrau dos três que nivelavam o piso da casa com o do jardim. Meu menino corria de um lado para o outro, longe, brincando de tentar alcançar Ben - nosso bernese mountain dog -, nomeado por mim e minha incrível falta de criatividade.

   Todas as manhãs eu me levantava antes mesmo deles e preparava para mim um pouco do meu chá preferido, colocava na vitrola, com o mínimo volume possível, um dos meus antigos discos de Nick Drake. Todas as manhãs, ao ir para a varanda segurando minha velha companheira nas mãos, uma única tábua do chão estalava, a cadeira de praia rangia e eu suspirava ao ver os primeiros sinais do nascer do sol. Era assim, todos os dias.

   Os pequenos acordavam e iam correndo para a cozinha. Meu coração regozijava ao ouvir seus pezinhos descendo a toda pelas escadas, suas mãozinhas abrindo os armários da cozinha, dois amigos inseparáveis, se cuidando todos os dias. Ela, dois anos mais velha e quase dez centímetros mais alta, pegava as tigelas e o cereal, enquanto ele estava encarregado de trazer o leite e as colheres. Eu preparava, sem esforço, meu melhor sorriso e meu melhor cumprimento ao ouvir que se aproximavam. "Bom dia pequenos, dormiram bem?" Seus rostos se iluminavam ao olharem para mim e responder: "Sim, papai.". Eles se assentavam a mesa - nossa pesada mesa de mogno que ficava na varanda -, preparavam o desjejum preferido de ambos e comiam calmamente, brincando com os olhares e as mãos, conversando em silêncio, preparando as travessuras de mais tarde.

   Nesse tempo, nosso querido Ben já estava a toda, correndo por entre as colinas e depois se aproximando ao ver que as crianças já terminaram de comer. "Podemos brincar agora papai?", eu assentia com a cabeça e eles disparavam. Clarisse ia buscar suas bonecas, o pequeno Sami saltava por cima da escada que levava ao jardim e corria chamando pelo nome de nosso bernese. Eu terminava meu chá, me levantava, a cadeira rangia, a tábua estalava, pegava as tigelas dos pequenos, o leite, o cereal, levava tudo para a cozinha e deixava lá até a hora do almoço, quando decidiríamos qual era o prato do dia, todos juntos, sempre. Quando eu ia de volta para a cadeira, Clarisse cruzava comigo, suas bonecas nos braços e sorrisos mil estampados em seu rosto. "E hoje minha querida, o que vai acontecer?", ela tinha uma imaginação fervorosa, sempre maquinando alguma coisa, todos os dias me deixava a par dos últimos acontecimentos da sua eterna novela de bonecas. "Hoje a Hana e o Ernest vão se casar papai!" - desde que viu em minha mesa um dos livros de Ernest Hemingway, nomeou imediatamente um de seus bonecos com o nome do autor. "Então já é hoje o grande dia? Melhor se apressar para começar os preparativos!", "Sim, papai! Já estava indo!". E lá ia ela, correndo para o velho e enorme tronco de carvalho derrubado à poucos metros da casa, dizia que lá era " a cidade deles papai, onde todos moram e se casam e dormem e vivem.".

   Tão lindos, perfeitos. Sami tinha meus cabelos e meu sorriso bobo, Clarisse a minha imaginação e os meus olhos matreiros. Mas ambos me lembravam intensamente a ela, irremediavelmente. Nos gestos, na fala, nas brincadeiras, no instinto natural de prestatividade e compaixão para com qualquer coisa que se movesse - ou não. Ali, sentado na minha velha cadeira de praia, meus chinelos de camurça no chão ao meu lado, vestindo minha velha calça de moletom e uma camisa manchada de café e mostarda, eu observava todas as manhãs meus pequenos. Atentamente via cada traço semelhante a mim ou a mãe ou a nenhum dos dois. Coisas próprias que um mistério juntou e transformou de nós para eles. Sentia muito a falta dela, mas antes era pior. Os pequenos passaram por tudo isso e agora renascem. Voltam os sorrisos, os abraços, as brigas bobas de criança que logo depois são esquecidas. E eu? Bem... Volto a sonhar. Continuar a fazer o que sempre fiz e continuar a viver o sonho que eu e ela construímos. Aqui no campo, nessa casa, com nossos profundamente amados filhos.

   Não voltaria no tempo. Não traria ela de volta. Ela se foi e, por mais que tenha doído e ainda doa, é assim que as coisas vão ser. Mudar a vida, o tempo, a morte... Bobagem querer isso. Ela gostaria que eu sorrisse como agora, vivesse como agora, me levantasse e continuasse a ver os anos entrando em nossa casa e nos trazendo tempos e tempos mais. Ver as árvores crescerem, envelhecerem e, como nós, se encherem de rugas. Não sonho com magníficas e gloriosas conquistas, mas sim com a humilde e simples alegria do conforto de um amor tão sincero e caloroso, que ela mesma me ensinou a amar.

sábado, 11 de setembro de 2010

Seol

Vivi tempo na escuridão. Observando tudo o que se passava aqui fora.
Meus olhos, desacostumados com a luz, ao contrário do que pensei não se incomodaram,
receberam placidamente cada partícula vívida que lhes encarava.
Os pés descalços, já calejados do chão duro e do concreto frio,
toda a confusão, lamentações a pouco perdidas, já não mais parecem tão reais.
A grama e o mato altos me fazem cócegas nas pernas,
cada nó e fibra do meu corpo se relaxa e recebe a maciez da terra que piso.
Uma trilha se abre a minha frente, eu ainda olho para baixo com medo de encarar o horizonte.
O sol cobre todo o meu corpo e os trapos que me envolvem são aquecidos,
não mais sinto frio.
A brisa leve e morna me diz para não ter medo.

Levanto o rosto e encaro as montanhas de um azul profundo cortarem os céus de fora a fora,
aos seus pés espalham-se aos montes amieiros-cinzentos e vidoeiros-brancos, protegendo
as marges de um lago que só posso divisar pequena parte, mas que reflete os raios de clareza com esplendor.
Crisântemos... De todas as cores que eu jamais poderia imaginar; já havia me esquecido de todas elas.
O sol me acolhe, a grama e o mato me alegram, as flores e as árvores me fitam a todo instante,
me convidando a ficar.
O cheiro de tão verdejantes vidas é suave e inebriante.

Olho ainda mais uma vez para trás,
A porta continua aberta, a chave pesa em meu bolso, um aperto no peito me vem e, de repente,
parece que tudo de que sou capaz é temer uma profunda treva que me aprisonou durante todo aquele tempo.
A brisa sopra um pouco mais forte, um pouco mais fria. Vejo deitado, à sombra de um dos vidoeiros, um cervo branco. Ele põe seus olhos em mim e parece enxergar algo que eu mesmo não poderia perceber.
Certo sentimento de decisão e coragem invade meu peito e os sons do vento roçando no mato é tudo que posso ouvir. Meu espírito se eleva.
Levo a mão ao bolso, tiro a chave que me fora dada tanto tempo atrás. Ainda brilha dourada e cheia de gosto, maldição que não pude evitar.
Seguro a maçaneta, empurro e fecho. Coloco a chave e tranco com uma volta.

Agora duas.

Viro-me e caminho em direção ao lago, o cervo se levanta lentamente e galopa, desaparecendo dentro do bosque onde se esconde o lago. Tudo agora parece ainda mais verde e caloroso. Não sinto mais fome ou sede. Pareço me imergir em uma manhã eterna.

Viverei aqui. Nada construirei, nada plantarei e de nada vou me aproveitar. Essa terra que agora piso me alimentará com sua força, esse lago que se esconde na paisagem ricamente arbórea à minha frente me saciara a sede com sua sabedoria. Serei um com este lugar. E ele me renovará, renascerei aqui como homem, vida e plenitude.

Caminho até o topo dessa pequena colina ao leste, deito-me e o mato alto me cerca, preguiçosamente admiro as nuvens. Fecho os olhos, a relva me cobre, a brisa morna e os raios de sol me aquecessem, a respiração lenta, o corpo se entrega. Calmamente adormeço. A esse lugar, chamo Seol.